28 Abril 2023
Uma rara janela está aberta, tanto para questionar a ordem global sob hegemonia dos EUA quanto para reverter a regressão econômica do Brasil. Que tipo de oportunidades ela oferece. Quais os obstáculos? Como superá-los?
A entrevista com Marco Fernandes é de Antonio Martins, publicada por Outras Palavras, 26-04-2023.
A tecnologia agrícola chinesa poderia impulsionar os assentamentos do MST? O historiador e psicanalista Marco Fernandes está convencido de que sim. Em Pequim há pouco mais de dois anos, ele integra a equipe de pesquisadores do Instituto Tricontinental,colabora com publicações com o Global Times e ajuda a produzir o boletim semanal Dong Sheng, que difunde semanalmente notas sobre a política chinesa. Mas Marco é também um entusiasta da reforma agrária. No Brasil, explica, toda a produção de maquinário agrícola está voltada para grandes propriedades. O índice de mecanização dos pequenos produtores rurais é irrisório. Já a China, um país sem latifúndios, tem 8 mil fábricas de máquinas voltadas para pequenas áreas. Durante a recente visita de Lula ao país, e com sinal de financiamento do BNDES, um projeto construído ao longo de meses parece ter amadurecido. O Brasil poderá primeiro importar e depois produzir em seu próprio território os tratores e colheitadeiras que darão nova força à agricultura familiar.
Embora inspiradora, a possível cooperação China-Brasil em tecnologia agrícola é apenas uma, em um enorme leque de possibilidades abertas por uma possível parceria estratégica entre os dois países, analisa Marco. O cenário global é especialmente favorável. A China é, há vários anos, a maior economia do planeta (se considerada a produção real e descontada a desvalorização artificial do dólar), como mostra o gráfico abaixo. Obteve êxitos notáveis, como a erradicação da pobreza extrema e a contenção da covid – com índices de mortes 40 vezes menores que os do Brasil e dos EUA, por exemplo. Mas ainda é ameaçada pela supremacia geopolítica e militar norte-americana – que se desdobra em atos agressivos, como a tentativa de bloquear o acesso chinês a semicondutores avançados. Precisa de aliados. O peso e a influência do Brasil na América Latina e no Atlântico Sul o qualificam.
(Fonte: Fundo Monetário Internacional)
Este potencial nunca foi explorado adequadamente. A regressão produtiva do país ampliou o espaço econômico e político do agronegócio. Em consequência, a pauta comercial entre os dois países, assumiu condição quase colonial. O Brasil exporta commodities agrícolas e minérios, e importa produtos industriais (especialmente eletrônicos) e tecnologia.
Marco vê dois caminhos paralelos para superar esta condição. O primeiro é uma ação combinada junto às instituições que moldam a ordem geopolítica, econômica e financeira internacional. O Brasil voltou a insistir, com Lula, na reforma da ONU. A China adota uma abordagem mais ampla. Seu presidente, Xi Jinping, sustenta ser possível perseguir uma modernização que não implique em “ocidentalização” – que ele associa a processos como a desigualdade extrema e a pilhagem do Sul Global. Além disso, o país lançou no início do ano uma proposta de Iniciativa de Segurança Global, para prevenir e resolver conflitos internacionais. No terreno econômico e financeiro, as duas nações têm buscado alternativas à hegemonia do dólar. Além disso, estão juntas em instituições como o Banco e o Fundo dos BRICS. Elas ão, diz o historiador, embriões de alternativas ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional. Falta dar-lhes mais iniciativa política. O encontro Xl-Lula pode ter aberto caminho para isso. A concretização desta hipótese teria enormes repercussões globais, podendo, por exemplo, livar países como a Argentina e o Paquistão de crises cambiais como as que vivem agora, ou de acordos indesejáveis com o FMI.
A segunda janela vista por Marco Fernandes é o investimento chinês no Brasil. Por meio das “novas rotas da seda” (Iniciativa do Cinturão e da Estrada – BRI, em inglês), Pequim tem feito financiamentos bilionários a projetos em dezenas de países. O movimento é tanto de instituições oficiais quanto de empresas privadas. Mas o sistema político chinês, lembra o historiador, permite que, em qualquer dos casos, as ações sejam orientadas essencialmente pelos interesses geopolíticos da China, não pela lógica de acúmulo de capital.
Uma parceria estratégica será de grande valia, caso o governo Lula esteja disposto a levar adiante seus planos de reconstrução nacional em novas bases. Num cenário em que há, no Brasil, restrições políticas para emitir moeda nacional, o investimento chinês poderia contribuir, por exemplo, para um plano nacional de universalização do saneamento, o início da transição energética ou a capitalização da Petrobras, de modo que possa readquirir suas refinarias e demais subsidiárias, ao invés de colocar à venda seu braço petroquímico, como parece estar fazendo neste momento.
Além de recursos, a China pode aportar tecnologia. Ela é líder mundial na construção de centrais solares e eólicas e acumulou enorme conhecimento e experiência em projetos como a reconstituição de florestas com espécies nativas, a despoluição de rios ou o uso de Inteligência Artificial para apoiar a busca de objetivos sociais (da luta contra a pobreza extrema à transformação da prevenção e dos atendimentos em Saúde).
Vale lembrar, mais uma vez: nada disso está garantido. Tudo depende de que prevaleçam, no governo e na entre a sociedade brasileira, visões interessadas em superar a regressão produtiva que mediocriza o país. A simples presença do governo Lula não assegura estas condições. Basta atentar para o fato de que, entre os empresários participantes da comitiva do presidente, a presença do agronegócio era a mais forte. Este setor agirá, dentro e fora do governo, para manter as relações entre os dois países na condição atual – muito desfavorável ao Brasil mas extremamente vantajosa para seus interesses e privilégios.
Mas é muito bom saber, em tempos difíceis, que há no cenário externo um fator muito favorável à construção de um novo projeto nacional no Brasil. A oportunidade está dada. Se saberemos aproveitá-la, ou não, são outros quinhentos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Brasil-China: até onde avançará a parceria? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU